Ser (tão) sertanejo

Ser (tão) sertanejo
Giovanny de Sousa Lima
Ser tão sertões
O Sertão está em toda parte
É múltiplo
Invisível
O Sertão pula de nós
E vai parar nos outros
O Sertão está nas cidades
Nos homens e mulheres
Às vezes eu fico tão inundado
Que transborda Sertão pra todo lado!
(Autor: Jorge Henrique da Silva Romero)

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Quer conhecer o Sertão? Pois bem, leia “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Beba no Sertão de Guimarães Rosa e seu “Grande Sertão Veredas”. Viaje no universo de Graciliano Ramos e pense “O Sertanejo”, de José de Alencar. Baile e se comova com a poesia esplêndida de Patativa do Assaré e a fantástica história da civilização indígena Cariris. E ainda perfume sua alma ao som das obras de Luís Gonzaga, Zé Ramalho, Luiz Ramalho, Elba Ramalho, Chico César, Alceu Valença, Fagner e Geraldo Azevedo. O Sertão tem mesmo algo de enigmático, fascinante, desafiador. É reinventivo.

Aprenda a sertanejar estudando e deleitando-se com as obras de Celso Furtado, Paulo Freire, Ariano Suassuna, Ivanildo Vila Nova, Otacílio Batista, José Américo de Almeida, Josué de Castro e Câmara Cascudo. Conforme ROMERO (1980), Luiz Feitosa resume a fertilidade do chão do Sertão que nutre a vida com alimento para o corpo e alma: “O chão do Sertão é um celeiro de vidas. As sementes de grãos e de esperança que o sertanejo ali deposita brotam como sonhos de suas vidas passadas e futuras. É verdadeiro que do chão brotam memórias passadas e futuras. Dele também brotam sonhos e movimentos. Do som dos instrumentos revolvendo a terra, em busca de vida, saem cantos míticos da criação. Dalí, tanto brotará o alimento do corpo, como o alimento da alma. Da terra brotam a arte e as inspirações artísticas”.

A relação dos homens e mulheres do Sertão é profundamente marcada pela valorização de todas as possibilidades genuínas, emanadas da terra onde estão contextualizados. Faça inverno ou verão, os sertanejos não manuseiam a aterra destituídos de sentimentos, esperanças, diante da imensidão, beleza, riqueza e desafios representados pelo esplêndido bioma caatinga, com suas inúmeras espécies vegetais e animais. Muitas das quais raras, só encontradas nessa região do mundo.

Deste chão emana, não apenas feijão, milho, mandioca, milho, algodão, batata, mamona, mandacaru, cana de açúcar, mas também uma variedade de frutas, lindas flores, e dezenas de insumos, que são apropriados e incorporados ao modus vivendi de parcela expressiva dos sertanejos. Tais insumos convertem-se em produtos culturais, quanto tecnologias alternativas, indispensáveis à vida cotidiana de milhares de pessoas. Exemplo disso, são as panelas, potes e demais utensílios derivados da argila. Bem como: enxadas, foices, martelos, e outros essenciais instrumentos feitos pelos sertanejos, sem para tanto terem tido acesso à escola e educação formal. Conseguem a proeza, em suas fecundas
relações com a natureza, transmudarem-se em qualitativos, originais, e belos agentes produtores de cultura. Milagre sertanejo, em minha concepção, ainda pouco estudado, pesquisado e socializado, principalmente, pela Sociologia, História, Geografia, Economia e Antropologia nacional.

Cenários de feiras livres, suas conexões com a cultura popular são reveladoras da inteligência, força e beleza criativa dos homens e mulheres sertanejos. Nas nossas feiras livres temos amostras pluralistas e riquíssimas da identidade cultural das populações sertanejas. Há ainda as festas populares, as tradicionais romarias, as vaquejadas, e nossas danças típicas.

A defesa, proteção e promoção do rico patrimônio histórico, geográfico e cultural existente em inúmeros municípios do Sertão Nordestino, por extensão, paraibanos, precisa ser efetivado enquanto política de Estado. Conforme Jéssica Arísla Rodrigues e Anna Luísa Dantas, em seu belo artigo “Lá vem o trem”, com pertinência, ressaltam:

Entre os diversos aspectos da identidade contemporânea, é a memória o mecanismo principal para construção da identidade social e local de um povo. A identidade se constrói em um indivíduo a partir de visões de mundo, ideologias políticas, e experiências históricas em comum com o grupo social em que vive, aliado à representações simbólicas. A memória compõe um fator de identificação humana; é a marca ou sinal de sua cultura. A sua relação com a História está na preservação e retenção do tempo, dando suporte para a organização do saber histórico. Portanto, o ser humano pode buscar subsídios na História para encontrar sua identidade, seu grupo social e sua maneira de viver. Devido à aceleração da História, cada vez mais o cotidiano afasta-se das vivências, da tradição e do costume, fazendo com que a memória deixe de ser encontrada no próprio tecido social. Portanto, tratar bem a memória é dar ao cidadão a chance de se identificar com o lugar onde mora. (RODRIGUES & DANTAS, 2019, p. 14)

Há o desafio, portanto, de que, conjuntamente, possamos mais e melhor efetivar a defesa, proteção e promoção da memória e história do lugar onde nascemos e habitamos. História das vaquejadas; do ciclo do algodão; da construção de nossas barragens e açudes; de nossos mercados e feiras; dos nossos primeiros meios de transporte; das nossas manifestações desportivas, artísticas e religiosas, ao longo do tempo; dos velhos e novos movimentos sociais.

Conforme o queridíssimo Patativa do Assaré, abordando o Sertão geográfico e cultural, declara, de forma objetiva e lindamente que: “O Sertão tem mitos culturais próprios. Contemporaneamente, o Sertão evoca, principalmente, o sofrimento resignado daqueles que padecem da falta de chuva e boas safras na lavoura. Evoca a experiência histórica de uma região empobrecida, embora tenha sido geradora de riquezas, como o cacau e a cana de açúcar, ambos bens muitos valiosos”.

O Sertão formou também o seu imaginário por meio de grandes personalidades, e uma pujante expressão artística. Além do Cordel, o Sertão viu nascer ritmos tão importantes quanto o forró e o baião. Produziu artistas tão expressivos quanto Luiz Gonzaga. Um escultor como Mestre Vitalino, que criou toda uma tradição de representação da vida e dos hábitos sertanejos, em miniaturas de barro. A gravura popular, floresceu em diversos pontos. Dentre os grandes mitos do Sertão está, certamente, o do Cangaço, com seu líder histórico, mas também mítico, Virgulino Ferreira, o Lampião. Até hoje as opiniões se dividem. Para alguns, foi um grande homem. Para outros, um bandido impiedoso.

Outra figura muito presente na cultura nordestina, e por extensão, sertaneja, é o Padre Cícero Romão, considerado beato pela Igreja Católica. Consta que teria feito milagres e dedicado sua vida aos pobres. E eu acrescento também o Frei Damião, detentor de inúmeras qualidades, virtudes e grande trajetória evangelizadora pelos sertões.

É este Sertão, em sua constituição de pluralidades culturais, que comumente desperta nos homens e mulheres que ali, principalmente, nasceram ou habitam, sensações e sentimentos, evocando imagens, representações sociais e apresentando-se como resultado de uma longa experiência sócio histórica e cultural.

Retomo alguns aspectos do Sertão a partir da reprodução de um poema contido na minha obra “Grãos de Mostarda”, disponível aqui: https://is.gd/vwjONK

SER(TÃO)
Badoque, aboio e baladeira
Enxada, foice e gibão
Marmeleiro, oticica e juazeiro
Umbuzeiro, graúna e umburana
Aveloz esparramado sobre as cercas
Garranchos de esperanças
Cartucheiras e caçadas
Fogo cego ateado nas roças
Práxis das brocas
A ressaltar tênues trilhas
De serras que se beijam
Ser(tão)
Casa de farinha
Beijus e tapiocas
Infinidades de cocadas
Bois berrando no mourão
Cachaças e vaquejadas
Alvoroço nas chegadas e partidas
Cheirinho de manteiga
Se espalhando pelos quatro cantos da casa
Galinhas de capoeira
Bodes cozidos e assados
Bandas de pífanos
Violeiros e cordelistas
Zabumba, triângulo e sanfona
Crianças com medo de trovão
Sorrisos largos e mãos ágeis
Abrindo bagens de feijão
Plantando sementes de esperanças
Na solidão da caatinga
Lindas e grandes feiras
Trabalho, trabalho
Trabalho apenas para ganhar o pão
Doces variados
E dores que parecem não ter fim
Engenhos de cana de açúcar
Garapa, rapaduras, alfenins
Mel de abelha
Mulheres rezadeiras
Mulheres parteiras
Sertanejas de imensa beleza
Ser(tão) espantador
Ser(tão) encantador.

Problematizando componentes fundamentais do nosso Sertão, digo que para além de messianismo, cangaceirismo, e subdesenvolvimento econômico, peixeiras, foice, enxadas e agricultura de subsistência, o Sertão sempre foi e continua sendo território de homens e mulheres muito trabalhadores, encharcados de dignidade, honradez, fé inabalável, e oceânico universo de poesias, rica culinária, crenças e crendices, lendas e folclore, belas casas de farinha, dinâmica produção artesanal, lindos rios e açudes, cacimbas e cisternas.

Considero que a Economia Política, Sociologia, História e Geografia do Sertão Nordestino têm nos últimos 40 anos sido caracterizada por significativos fatores, desencadeadores de mudanças nas relações sociais, tecidas no seu cotidiano. Entre as quais destaco: urbanização desordenada e acelerada; esvaziamento progressivo do campo; substituição de culturas, como a produção de cana de açúcar, por outras – para responder demandas de uma contraditória prática pecuarista (criação de gado) numa área marcada, majoritariamente, pelo Polígono das Secas, como é o caso mais específico do Sertão Paraibano; a inserção da televisão e do asfalto até nas microcidades e no campo; e, mais recentemente, introdução das novas tecnologias, como por exemplo, o celular e computador; expansão da difusão do american way of life; incorporação desse “estilo de vida” por centenas de jovens, com afastamento desses das raízes culturais históricas sertanejas – havendo, por conseguinte, uma substituição de valores culturais autênticos por modismos, mitos linguagens, símbolos, sinais, proclamados pela indústria cultural e globalização neoliberal; surgimento de uma insipiente classe média e classe média; ampliação dos equipamentos comunitários; implementação de novas políticas sociais – eclosão de projetos e programas sociais de relativa relevância, importância e significação teórico-prática, voltados para os excluídos, camadas populares, nos últimos 14 anos; edificação de novos projetos arquitetônicos e de engenharia física no setor comercial, público, principalmente, modificando o espaço urbano e rural, de forma gradativa; significativo retorno de imigrantes para a região, oriundos do Sudeste; intensificação da aquisição e circulação de automóveis; e modernização dos meios de comunicação em geral; profusão de partidos políticos no cenário municipal.

O que é fundamental questionarmos é que se tais inovações, respaldadas em novo arcabouço jurídico, inclusive, estão mesmo assegurando possibilidades reais de exercício da cidadania; efetiva dignidade e melhoria na qualitativa da vida; bem como, efetivo respeito aos Direitos Humanos, no contexto desta região, vítima de tantos autoritarismos, negligências e violências, já históricas. Macrouniverso congregador de diversificados, ricos, sublimes e impactantes microcosmos sócio-históricos-culturais, o Sertão possui inúmeras cores, fartos odores, esperas e esperanças, despedidas e reencontros.

Quem ainda não o conhece pede a oportunidade de conhecer mais e melhor o Brasil, profundamente, de inigualável cultura popular, esparramada por todo seu território, cenário de homens e mulheres que abrigam no peito e alma um infinito amor, orgulho e honra de ser e poder sertanejar, com suas lendas, crenças e pluralístico universo cultural, gerados por sensibilidades autênticas. Ser tão sertanejo é um pouco do que aqui está contido.

REFERÊNCIAS:

ASSARÉ, Patativa do. Uma voz do Nordeste. João Pessoa: JC Editora, 2016, p. 8.

LIMA, Giovanny de Sousa. Grãos de mostarda. San Bernardino: Amazon, 2017, p. 108-109.

RODRIGUES, Jéssica Arísla; DANTAS, Anna Luísa. Parahyba: Informativo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep). Ano IV, N° 04. João Pessoa-PB: [s.n], 2019, p. 14.
ROMERO, Jorge Henrique Silva. Sertão e outras ficções: ensaio sobre a identidade narrativa sertaneja. Campinas-SP: [s.n], 2015.

Giovanny de Sousa Lima