Brasil

Aprender a conviver com a seca

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Recebi do amigo e engenheiro José Artur Padilha (não deixem de assistir ao vídeo sobre o Base Zero) este excelente e muito atual artigo do professor José Eli da Veiga:

Ao entrevistar Celso Furtado, a revista Econômica do Nordeste dirigiu-lhe a seguinte pergunta: "Uma das suas grandes contribuições foi pensar diferentemente no problema que atingia o Nordeste. Defendia que a questão era mais econômica, com o processo histórico envolvido do que propriamente físico – geográfica, em que a seca apenas acionava as fragilidades ali existentes. Essa visão permanece?"

                Celso Furtado: "Sim, permanece. (…) O que percebi é que a seca era engendrada por uma crise social. A verdadeira crise era social, não econômica. (…) Todavia, a compreensão de que a seca é um problema ecológico foi, para mim, definitiva, pois percebi o que ocorreria mais tarde: O Nordeste se enriquece e continua com esse ponto fraco."

                O maniqueísmo da pergunta e a ambigüidade da resposta só confirmam a dificuldade de pensar a influência recíproca que exercem sociedade e natureza no drama nordestino. O crescimento econômico da região tem sido muito significativo, mas seu "ponto fraco" continua a ser esse "problema ecológico" denominado "a seca". Querer subestimar o peso da fragilidade físico – geográfica não é menos ridículo do que pretender ignorar as responsabilidades da sociedade em seu agravamento.

                 O plano de Recursos Hídricos do Estado do Ceará mostra que muitos açudes existentes no Nordeste não atendem à sua finalidade ou não conseguiram encher o suficiente, funcionando mais como evaporímetros do que como fonte segura de água. É que a própria localização dos açudes resultou de decisões políticas orientadas por motivações que contrariaram os mais rudimentares critérios agroecológicos. Um bom exemplo é o de Orós (CE), onde a maior barragem de terra do mundo afogou a principal mancha de solos irrigáveis do Vale do Jaguaribe, além de nada ter sido feito para que seus habitantes se tornassem aptos a usar novas tecnologias de manejo adequado do binômio solo água. O professor Aldo Rebouças, conhecedor profundo das condições hidro-geográficas do Nordeste, diz que sempre houve uma nítida preferência pelo projeto mais caro e fotogênico de barramento dos rios, além de indisfarçável desconhecimento ou preconceito com relação às águas subterrâneas, cujos projetos demandam investimentos mais modestos e podem ser construídos progressivamente, com a participação ativa dos agricultores do sertão. Segundo ele, o que mais falta no semiárido do Nordeste brasileiro não é água é sim um "padrão cultural que agregue confiança e melhore a eficiência das organizações públicas e privadas envolvidas no negócio da água" (ver revista Estudos Avançados, janeiro-abril 1997).
                            
                 Essa visão de que o problema é mais de escassez de confiança que de escassez de água coincide com o consenso que se vem formando no âmbito de organizações internacionais, como o Bird, BID, FAO e Cepal, sobre o "capital social" como turbina do desenvolvimento. O que aumenta a eficiência da sociedade, facilitando ações coordenadas, são características como confiança, normas e convenções. Uma tese que ganhou muita força com a ampla pesquisa sobre o contraste entre norte e o sul da Itália, coordenada por Robert Putnam, Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna (FGV – RJ, 1996).

                 Infelizmente ninguém sabe direito o que é preciso fazer para criar capital social numa situação em que ele quase não existe. Trata-se, no fundo, da construção de uma novo sujeito coletivo do desenvolvimento que deve exprimir a capacidade de articulação das forças dinâmicas de uma determinada micro/mesorregião, como sugere o trabalho do professor Ricardo Abramovay, intitulado "Capital social dos territórios: repensando o desenvolvimento rural", apresentado no fim de novembro em seminário sobre o desenvolvimento sustentável, em Fortaleza.  O que é possível dizer é que essa capacidade de articulação depende de pelo menos cinco requisitos :

• a mudança do ambiente educacional;
• a formação de redes que extrapolem os limites setoriais;
• a formação de associações ou consórcios intermunicipais;
• a criação de mercados que valorizem as potencialidades regionais territorializadas;
• e o apoio organizado de instituições de ensino superior (principalmente universidades) da própria região.

                 Essa capacidade de articulação vem-se revelando na Região Sul do Brasil, em torno do que tem sido chamado de "pacto territorial". Isto é, um consenso que permite conseguir outros cinco trunfos:

• mobilizar os atores em torno de uma "idéia guia";
• contar com seu apoio não apenas na execução, mas na própria elaboração do projeto;
• fazer com que esse projeto seja orientado para o desenvolvimento das atividades de um território;
• realizá-lo em um tempo definido;
• e criar uma entidade gerenciadora que expresse a unidade (sempre conflituosa) entre os protagonistas do pacto.
 
                 Só quando esse tipo de articulação ocorrer pelo semi-árido afora é que o Nordeste se poderá livrar de seu terrível "ponto fraco" – a curiosa elocução de Celso Furtado. Em vez de teimar em "combater" a seca, o acúmulo de capital social certamente indicará quais são as melhores maneiras de com ela conviver.

• José Eli da Veiga é professor do Departamento de Economia da FEA-USP e organizador do livro "Ciência Ambiental" (Fapesp/Annablume, 1998).
E- mail:
[email protected]                             

Fonte: O Estado de São Paulo – 02/01/1999

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