A disenteria do bife de ouro

Jarismar Oliveira (Mazinho) — Colunista
Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não haveria pobreza no mundo e ninguém morreria de fome. (Mahatma Gandhi)

Em sua trajetória o campeonato mundial de futebol do Qatar custou: US$ 220 bilhões (o mais caro da história); 500 suicídios de trabalhadores; uma camisa da seleção brasileira presenteada – pelo presidente do Brasil em 2019 – ao emir Tamim bin Hammad Al-Thani; bifes banhados a ouro no estômago dos abastados atletas brasileiros e, por fim, uma disenteria em campo contra a time da Croácia. Uma copa de horrores. Algo no futebol está se consumando desagradável.

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Em um relatório de 2021 a organização de direitos humanos Anistia Internacional apresentou o número 15.021 como sendo o número de trabalhadores imigrantes mortos no Qatar, após a confirmação daquele país como sede da Copa em 2022. Há ainda ativistas de direitos humanos apontando que 15 mil trabalhadores teriam morrido nos preparativos para esse fatídico campeonato. Do anúncio da sede do mundial, feito em 2010, até o presente há mais de uma década de trabalho em temperatura ambiente de aproximadamente 50 graus; em condições análogas ao sistema escravocrata, inclusive com retenção de documentos; as repressões de praxe a mulheres, antagonistas ao governo e à comunidade LGBTQIA+ entre outras privações, segundo o jornal britânico The Guardian.

É fato. Nesta copa do mundo do Qatar alguns jogadores saborearam um jantar folheado a ouro, com bifes cobertos pelo valioso metal de 24 quilates. Seus intestinos regurgitaram a iguaria ao custo bagatelar de 9 mil reais. Tenho certeza que dormiram pesadamente após o resfestelo do Golden Steak, na churrascaria Nusr-Et, preparado pelo famoso Salt Bae. O mesmo não digo dos mais de 30 milhões de brasileiros que vivem o pesadelo da fome diária.

A concentração de renda no Qatar é a maior do mundo. Nenhum outro país possui uma renda per capita de US$ 144 mil (isso equivale a 22 vezes a do brasileiro). O Qatar é um primor do luxo e da vaidade masculina. E o futebol, com seus salários bilionários, desembarcou nas coordenadas geográficas mais condizentes com a sua fome pecaminosa e desperdiçante. De lá os heróis da seleção canarinho desdenharam da miséria alimentar dos seus milhões de compatriotas.

A fome é fruto dos desvarios humanos. Da falta de sensatez, de empatia para com o próximo. Da ausência de políticas sérias e compromissadas com o bem estar das pessoas. As políticas de segurança alimentar da maioria das nações subdesenvolvidas se rendem aos apelos fantasiosos da saga futebolística. Os mundiais de futebol invadem os lares famélicos de milhões e estes ainda envidam energias nos gritos de gol, excitados pelas mídias tradicionais e por aqueles a quem interessa o futebol como ópio do povo.

A fome não é o que você sente entre uma e outra refeição. A fome, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), é “a dor ou desconforto que decorre do consumo insuficiente de nutrientes responsáveis pelo fornecimento de energia ao corpo humano”. No mundo, hoje, segundo a ONU, a dor e o desconforto da fome reside na barriga de 828 milhões de pessoas. A fome é presente. Tem gente passando fome. Tem gente vivendo a fome. Tem gente morrendo de fome a cada 4 segundos no mundo. Dos 8 bilhões de humanos, 9,8% sobrevivem em agonia alimentar. Enquanto isso, o futebol entretem olhos famintos nas telas da TV e os seus protagonistas se deleitam, fartando-se, em total indiferença com a fome que campeia no planeta.

Da seleção brasileira esperava-se a fome de bola dentro de campo, mas o que nos entregaram foi o desarranjo intestinal dentro das quatro linhas. Sequela do bife de ouro? Sugiro que procurem se alimentar com bom senso, sem os temperos dourados da soberba, porque “são tão doentes aqueles que se saciam demais, como aqueles que passam fome”, nos alerta William Shakespeare.

Por: Francisco Jarismar de Oliveira  — Mazinho é Mestre em Ensino pela UERN. Licenciado em História pela UFCG; Especialista em Informática em Educação pela UFLA e Servidor Público Federal do IFPB.