Cotidiano

O choque de realidade das vacinas

Enfim chegou a notícia que os dirigentes políticos temiam: as vacinas nem sempre atendem o calendário das eleições e a Ciência Médica, que não é exata, segue soberana e consciente do rigor de seus protocolos.

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Apesar de vivermos uma pandemia e o mundo clamar pela imunização contra o Coronavírus sempre se soube que as vacinas não obedecem um calendário imutável. Em todas as suas fases pode haver surpresas, o que ocorre com muita frequência. E foi assim com a aclamada promissora vacina de Oxford, que ontem anunciou a interrupção dos testes em função do efeito colateral que surgiu em um dos voluntários, e também poderá ser com as demais vacinas que estão em desenvolvimento.

A fase 3 das vacinas, quando ela é inicialmente testada em um pequeno grupo e depois sobre uma amostragem maior, sempre revela surpresas. Isso faz parte da rotina dos estudos e nunca é evidenciado, mas neste momento em que estamos sob os holofotes da Covid-19 parece termos sofrido uma derrota. Não necessariamente.

A notícia pode até ser encarada com entusiasmo, pois nos permite ter certeza de que os critérios científicos não estão sendo atropelados pela imposição do Coronavírus e pela exigência do trunfo político.

É nesta fase que os estudos apontam a eficácia ou não das vacinas e sua dosagem ideal. E também é nesta etapa que é avaliado o período ativo da vacina no corpo humano, ou seja, se ela tem a duração de um ano ou mais e seus possíveis efeitos colaterais.

O que aconteceu com a vacina de Oxford está absolutamente dentro da normalidade científica. Não adianta provocar na população, por outros interesses que não os clínicos, a falsa ideia de que estaremos imunizados até o final deste ano. Mesmo as vacinas de COVID-19 que estão entrando na fase 3 só devem ser liberadas após um ano de teste clínico, por necessitarem desse prazo para identificar o período ativo no corpo humano. Para seguir o rigor científico é preciso respeitar esse tempo.

Após esses testes, os dados coletados são enviados aos órgãos competentes, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Comitê Científico Internacional (do qual a OMS faz parte) para que a vacina seja referendada. Sem esse referendo, nada feito. Após é realizado um pedido formal para que a vacina seja aprovada para fabricação. No caso do Brasil ela deverá ser liberada pela Anvisa.

Nesse pedido de liberação, consta um relatório com informações sobre a doença, a forma como ela atuará no corpo, quais são as restrições, formas de aplicação da vacina e cuidados a serem tomados. A decisão final passará às mãos dos órgãos reguladores. Ou seja, órgãos governamentais têm a responsabilidade nas etapas seguintes de disponibilizar e permitir que profissionais prescrevam a vacina. Esta etapa, em virtude da pandemia, deverá ser acelerada pelos governos se os testes forem satisfatórios.

Depois de cumpridas essas etapas, a vacina será fabricada e distribuída nas redes pública e particular, de acordo com a política de Saúde Pública.

Para cumprir todas as etapas a vacina deverá estar disponível para uso em meados de 2021 e aí sim a decisão política poderá ser determinante para que esse calendário realista possa ser atingido.

Toda nova vacina exige uma plataforma diferenciada para sua fabricação, ou seja, é preciso construir uma planta para a produção em escala. Por outro lado, os testes finais podem indicar a ineficácia da vacina e ela não entrar em processo de fabricação. Em meio a pandemia, os governos podem optar por fazer o investimento em um planta mesmo sem a certeza de que ela entrará em operação, mas caso seja aprovada garantirão a produção imediata.

Até que tenhamos a vacina, os governos e a população não podem perder de vista os cuidados com a segurança sanitária, como isolamento social, higienização das mãos e uso de máscara. Parece entendiante pensar em continuar a viver assim por mais um ano, mas foram essas medidas que nos trouxeram até aqui, juntamente com a curva de aprendizado do sistema de Saúde e as políticas emergenciais adotadas pelo poder público. Abandoná-las agora seria imprudente e irresponsável.

Sigamos em frente com o que temos até agora e confiantes de que a Ciência nos trará a solução definitiva, que não deve passar pelo crivo eleitoreiro imediatista e sim pelo respeito à Medicina e suas soluções seguras. Deixemos a politização de lado.

O vírus tem nos mandado muitos recados e o choque de realidade ao qual fomos alçados ontem foi mais um deles. Que ouçam os que têm ouvido para ouvir.

Sérgio Zanetta, médico sanitarista

Professor de Saúde Pública do Centro Universitário São Camilo

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